quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

O MEDO DE SER


"Vejo quilômetros de filmes e teipes, anos a fio, leio quilos de papel, despenco abismos de olhares, enfrento filas intermináveis de letras: autores, atores, diretores, sonoplastas, criadores, publicitários, o filmete, o produto, a peça, o disco, a monografia, o retrato. Vejo a moça que quer dizer o que pensa e não diz. O homem que quer entregar o sentimento mas segura. O pai querendo dizer que ama o filho e não consegue. O filho com vontade de viver a própria experiência e teme.
Em tudo por onde passa o olho do cronista está presente o medo de ser. Estranha mistura esta, a humana, que nos faz querendo sempre ser e vacilando a cada momento de realizar. 
É a moça que quer apenas ser amada mas se defende realizando o discurso sociológico. É o rapaz que pretende ser político mas tem medo de perder a vida. É o menino que deseja falar com o outro, mas teme ser mal julgado. É a mãe que deseja reter o filho mas disfarça.
O medo de ser paralisa o gesto de afeto pelo temor do ridículo, o riso, escárnio, gozação, indiferença e até do elogio. O medo de ser impede a fraqueza diante de quem se depende, impossibilita a entrega completa porque pode ser mal interpretada. O medo de ser prolonga muita coisa que já acabou.
Cria defesas mirabolantes: ficar rico; ser original; metido e diferente; fazer-se inteligente; transformar-se em culto, no melhor da turma, ser o rei da festa, o engraçado, fazer peso ou se transformar no bambambã da esquina, bater o recorde, ser da seleção, “meu filho seja sempre o melhor”; parecer bom; dar uma de herói; cobrar atitudes sempre dos outros; criticar sem reparar as dificuldades de cada um.
O medo de ser cala raivas, sepulta ódios, finge que não liga; provoca concordância com os grupos mais agressivos ou convincentes, adere a modas, segura as pontas; aguenta a barra; sacode a poeira, adula; passa a mão na cabeça; aparenta eficiência; faz ser eficiente; ensina a mandar; aprende a obedecer; faz repetir os gestos silencia a franqueza; teme a critica; impede a ocupação do próprio espaço.
O medo de ser paralisa o gesto de amor; adia o telegrama de parabéns; não envia a carta de amor; finge que não odeia; esconde-se na simpatia; simpatiza com os esconderijos; faz concordância irrefletidas; aceita influencias; finge-se de forte; depende do que aparenta. Ele estraga a alegria que não era sincera; atrapalha a viagem que era só fuga, procura aquela tristeza e faz ficar mais triste, vai aquele lugar mas dá formigamento nas extremidades, aceita elogio sem com ele concordar; sofre em demasia por injustiça, mesmo a sabendo injusta. Rejeita o louvor, mesmo o sabendo sincero.
O medo de ser não comunga na hora em que dá vontade e sim por causa dos outros; não ensina a lição do próprio amor porque vive na dependência do amor alheio, não se olha no espelho com pavor de encontrar o rosto de quem inveja.
O medo de ser é a fuga do mais genuíno e próprio de cada pessoa por causa dos padrões e modelos e comportamentos inculcados, introjetados, inocultos, disfarçados em amor.
Forma a legião das representações que envolvem a maioria de nossos atos.
O medo de ser gera outros eus. Gera o tu, o ele, o nós, o vós, o eles no eu; e não o eu no tu, no ele, no nós, no vós, neles, como expressão mais autentica e verdadeira do que somos e não do que fingimos ser.
Medo de ser, merda de ser."


Artur da Távola
“Alguém que já não foi – Crônicas”

Sem comentários:

Enviar um comentário